Ilustre Passageiro
- Senhores passageiros do vôo 3919, das 13 horas, com destino a São Paulo, embarque imediato no portão 5.
Eu que estava ali entretido com a leitura da revista Margem Esquerda, mergulhado no artigo de Ricardo Antunes sobre a lógica destrutiva na era do extremo irracionalismo, fechei rapidamente a publicação de estudos marxistas, e me dirigi ao tal portão 5 do aeroporto Santos Dumont. O sol temperado de maio deixava o céu da cidade maravilhosa ainda mais azul e radiante.
Já dentro do avião, devidamente instalado na poltrona 9-D, voltei à leitura da Margem Esquerda. De repente, fui surpreendido por uma voz nada familiar.
- Excuse-me!
Era o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, em carne e osso, ao vivo e em cores. Durante alguns segundos, custei a acreditar.
Desde 1989, quando o regime fundamentalista do Irã decretou a morte do autor dos Versos Satânicos, venho acompanhando a vida de Rushdie. Durante muitos e muitos anos segui de longe a agonia de um ser humano marcado para morrer. Como poderia alguém viver refugiado num canto qualquer de Londres, sem poder colocar o nariz para fora de casa? Ficava pensando com os meus botões como era o dia-a-dia daquele homem enorme, envelhecido pelo tempo, com seus olhos de peixe morto, marca registrada dos indianos.
Como poderia alguém viver em Londres sem ir na lojinha de um conterrâneo todas as tardes para comprar uns saquinhos de chá preto Twinings do Ceilão? Como poderia alguém viver sem sair debaixo da garoa da manhã para comprar o elegante The Independent? Sem poder, aos sábados, dar uma chegada ao Museu de História Natural, ou fazer coisas banais como sentar no Holland Park para ler a Time Out comendo Kit-Kat? Rushdie não pôde fazer nada disso durante nove anos.
Depois dos Versos Satânicos, vieram outros. ?????, O Último Suspiro do Mouro, O Chão que ela Pisa, Haroun e o Mar de Histórias. O mais recente, Fúria, li logo após os atentados de 11 de setembro. Durante dias esperei aflito a chegada de Furie na Fnac francesa. O livro veio pelo correio e me deixou impressionado aquela capa concebida antes dos aviões explodirem nas torres gêmeas.
Há cinco anos fiquei um pouco mais aliviado com a reportagem que li na revista EP Semanal, a revista dominical do El Pais. Numa longa entrevista, Salman Rushdie contava que, aos poucos, estava voltando a ter uma vida normal. Uma foto feita no centro de Madri, mostrava um homem despreocupado, sem o temor de uma bomba cair sobre sua cabeça a qualquer momento.
Nas páginas amarelas da semana passada, Rushdie me deixou ainda mais tranqüilo ao afirmar que voltou a vida como ela é. Ele contou a Veja que toma o metrô, vai ao mercado e viaja de avião como qualquer pessoa. E hoje, assim de repente, aquele escritor estava ali sentado a meu lado, anônimo, como uma pessoa qualquer.
Salman Rushdie trajava calça e paletó pretos, seguramente casimira inglesa. Uma camisa azul anil muito bem passada, sapatos engraxados e meias também pretas. Segurava uma sacolinha branca, provavelmente um presentinho para alguém. Um celular prateado de última geração, devidamente desligado, já que o avião iria decolar.
Durante os 45 minutos de vôo, ele ficou com os olhos colados na janelinha do avião, olhando nossa paisagem. Não aceitou comer o sanduíche de abobrinha grelhada, o Chocobiz, nem mesmo pensou em experimentar o nosso guaraná, apesar da insistência da aeromoça Danilly. Ele parecia maravilhado com nossos verdes campos. Salman Rushdie não se assustou nem mesmo quando o avião fez aquele vôo rasante sobre os arranha-céus de São Paulo.
Durante os 45 minutos fiquei ali pensando que aquele homem ali sentado ao meu lado foi um alvo dos extremistas e que poderia morrer a qualquer momento. Torci para que nada acontecesse naquele vôo. Cheguei mesmo a imaginar as manchetes dos jornais do dia seguinte.
AVIÃO DA TAM EXPLODE NO AR COM O ESCRITOR SALMAN RUSHDIEPOLÍCIA SUSPEITA QUE TERROR EXPLODIU AVIÃO QUE MATOU SALMAN RUSHDIESALMAN RUSHIE MORRE EM ACIMENTE AÉREO. TERROR ATACA: SALMAN RUSHDIE MORRE EM ACIDENTE AÉREOEXTREMISTAS MATAM SALMAN RUSHDIE
Quando o comandante avisou que em poucos minutos pousaríamos no aeroporto de Congonhas, peguei o exemplar de O Globo que lia, retirei a caneta do bolso e fiz o que nunca havia feito na vida. Pedi um autógrafo! Sorte minha que o cartum de Chico Caruso naquela segunda-feira mostrava, na primeira página do jornal, o escritor numa fila, pedindo autógrafo para o leitor (foto). Salman Rushdie gostou da charge, soltou um sorriso amarelo e se preparou para desembarcar. Desceu do avião e, em poucos, estava misturado à população dessa cidade louca, mas que, certamente, não irá assassiná-lo.
Ass:Fernandinha
domingo, 1 de novembro de 2009
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