domingo, 1 de novembro de 2009

CALOR

CALOR

Calor, muito calor ainda — o sol batendo na parede do quarto —, mas ele agora sentia-se melhor.

— Você aqui é como uma brisa...

Ela sorriu, alegre e bonitinha nos seus quinze anos.

— Mais cedo eu tive a visita de uma amiga — ele contou, a cama com a cabeceira erguida: — mas ela é tão feia, tão feia que o meu quadro de saúde até piorou.

Ela riu.

— Quem, tio?...

— Não, isso eu não posso te contar — Por quê?

— Você conta pros outros...

— Juro que eu não conto.

— Só posso te contar isso: que ela é tão feia, que eu quase piorei; quase tive de tomar uma injeção.

Ela deu uma risada.

— Pois é — ele disse; — é isso. Eu estava assim. Mas a. você chegou, e aí eu melhorei; agora eu estou bem...

Sentada numa das três cadeiras do quarto, ela, de shortinho, cruzou as pernas; depois jogou para trás os longos e lisos cabelos castanhos.

— Eu queria vir ontem à tarde — ela disse; — mas a minha professora de inglês trocou o horário, e aí...

— Foi melhor — ele disse, — melhor você ter vindo hoje: ontem eu estava ruim, estava sentindo muita dor ainda.

— Mas a operação correu bem...

— Correu; correu tudo bem, felizmente.

— E o corte, foi grande?

— O corte? Uns... Alguns centímetros. Você quer ver? Você está pensando em ser médica...

— É, eu estou pensando...

Ela se levantou e se aproximou da cama.

Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e...

— Ôp! — cobriu rápido; — o passarinho querendo fugir...

Ela riu.

— Aqui — ele mostrou: — o corte vai daqui ate aqui...

Ela ficou olhando — as tiras de esparadrapo sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate.

— É grande, não é? — ele disse.

Ela balançou a cabeça, concordando

Voltou então a sentar—se.

Os dois calados. Uma tosse de velho lá no fim do corredor.

— Fui te mostrar uma coisa — ele disse, — e você acabou vendo outra...

— Eu? — ela disse. — Eu não vi nada.

— Não?...

— Você cobriu!

— Ah...

— Por que você cobriu?

— Por quê?...

Ela riu:

— Estou brincando, hem tio? Não vai achar que eu...

— Bom — ele disse: — se você quer ver de novo...

— Eu não! — ela disse, olhando assustada para o corredor.

— Não?...

— Não.

— Por quê?

— Por quê?...

Ela riu, mas não respondeu.

— Hum?

— Pra você depois contar pros seus amigos, né?...

— Contar pros meus amigos?...

— Claro — ela disse. — Lá no bar, lá na sua rodinha, depois de tomar umas tantas, você vai dizer: "Sabem aquela minha sobrinha, a Daniela?...”

— Não, não vou falar isso não; não vou falar pra ninguém.

— Sei...

— Palavra de honra.

— Acredito muito...

— Eu prometo. Só nós dois saberemos. Será um segredo nosso: até a morte.

— Hum... Muito bonito...

— Juro. Pode acreditar em mim.

— Você não quis acreditar em mim...

— Eu?

— Agora há pouco.

— Mas aquilo era uma coisa à toa.

— E isso?

— Isso? Bom, isso...

— Hum; o que é isso?

— Eu acho que isso é uma coisa bonita, uma coisa entre um homem e uma mulher; entre um adulto e uma jovem; uma coisa entre um tio e uma sobrinha que se querem.

— Eu, pelo menos...

— Eu também, Daniela; eu também te quero; quero muito, você pode ter certeza.

— Você é o meu tio mais legal, o único de cabeça aberta, o mico com quem dá pra conversar.

— Obrigado...

— Se fossem os outros... Se fossem os outros, eu nem tinha vindo aqui.

— É?

— Tio Breno, por exemplo: Tio Breno mal me cumprimenta; como se eu não existisse. Tio Jerônimo de vez em quando ainda dá umas prosas, mas eu acho que a única coisa no mundo que interessa para ele é boi; ele só fala em boi, e agora na falta de chuva: que se não chover dentro de poucos dias, ele vai perder não sei quantas cabeças de gado e que... Ele só fala nisso. Eu acho que ele nem dorme, pensando nos bois dele...

Ele riu.

— Já a Tia Zilda... Tia Zilda é aquela fera. Ela vive no meu pé. Agora ela deu pra implicar com os meus shortinhos: "Por que essa menina não anda pelada de uma vez?..."

— Ótimo .

— Ótimo?... — ela riu. — Quê que é ótimo?...

— A Zilda falar assim.

— Ah...

— Agora, você andar pelada... Sinceramente: se de shortinho já é isso que a gente vê, pelada...

— Tio...

Ele riu.

— Você está com febre?... — ela perguntou.

— Não...

— Então é o calor.

— Quem sabe?

— Eu nunca te vi assim...

Uma enfermeira passou, em direção ao fundo, e deu uma olhada para dentro do quarto.

A tosse do velho. Um bebê chorando. Vozes. De novo o silêncio.

— Bom, mas então. — ele disse; — quer dizer que você não quer mesmo...

— O quê?

— Ver; ver de novo...

— Não.

— Então tá; fim de papo...

Ela curvou—se para amarrar melhor o cadarço. Depois ergueu o pé, mostrando para ele:

— Que tal? Gostou do meu tênis?

— Gostei. E você, gostou do meu pênis?

— Tio!... — ela disse, se levantando e pondo a mão na boca.

— É só pra fazer um trocadilho...

— Você hoje está impossível, hem?

— Eu não ia perder a oportunidade de fazer esse trocadilho...

— Você hoje... você está precisando de umas palmadas, viu?

— Dá, dá as palmadas; suas palmadas seriam como... seriam como uma chuva de plumas em meu corpo.

— Uai: você agora virou poeta?

Ele riu.

— Você hoje está um perigo...

— Eu?... Que perigo pode ter um homem preso numa cama de hospital?...

— Hum... Muito perigo!...

Ele tornou a rir.

— Você... — ela disse, se abanando com as mãos, os seios saltitando soltos sob a blusa.

A enfermeira passou de volta, sem olhar para o quarto.

— Bom, mas então... — ele disse; — quer dizer que o nosso assunto está mesmo encerrado...

— Que assunto?

— O nosso assunto...

— Está.

— Encerrado?...

— Está.

— Definitivamente?...

— Definitivamente.

— É... — ele disse; — é uma pena...

— Pois é...

Ela então andou devagar até a cama, encostando-se na beirada — as coxas bronzeadas de sol.

Passou a mão de leve no braço dele:

— Tio Leo, Tio Leo...

— O quê

— Não acredite em tudo que eu falo, tá?...

— Não?...

Ela negou com a cabeça.

— Quer dizer que...

Ela sacudiu a cabeça.

— Ótimo... — ele disse.

Olhou pela porta aberta, em direção ao corredor; ela também olhou.

Então ele encolheu as pernas, fazendo com elas uma parede: afastou o lençol, e depois...

— Nossa! — ela disse. — Tio!...

— Pega.

— Pode?...

— Você me daria a maior felicidade.

— Mesmo?...

— Eu seria o homem mais feliz do mundo.

Ela olhou para o corredor

— Está com medo? — ele perguntou.

— Não; eu...

— Pega.

Ela parada.

— Você não quer?

— Quero, mas...

De repente ela puxou o lençol sobre ele.

— Quê que foi?...

— Nada — ela disse, nervosa; — eu que... Desculpe, tio...

— Tudo bem...

Ela foi até a janela e ficou, meio de costas, olhando para baixo.

Da rua, quase sem barulho, veio a buzina de um picolezeiro.

Ela deu um suspiro fundo:

— Tem dia que eu tenho vontade de morrer...

— Por quê?

— Viver é complicado demais...

— É assim mesmo — ele disse.

Ela tornou a sentar-se, as mãos apoiadas nas coxas, o olhar fixo no chão e os cabelos quase cobrindo o rosto.

— Acho que eu já vou...

— Embora?

— É...

— Por quê?

— Eu preciso...

— Fica mais.

— Não posso...

— Fica...

Ela olhou para ele — e de novo para o chão:

— Eu não vou fazer mais nada — disse, com languidez;se é isso...

— Não, não é isso.

— Acho que a gente não devia ter feito o que a gente fez...

— A gente não fez nada!

— Não sei quê que me deu na hora... Às vezes acho que eu não bato bem...

Ele ficou em silêncio.

— Eu...

— Está bem, Daniela — ele disse, ajeitando-se um pouco na cama e depois puxando o lençol até o peito.

— Eu sou uma criança ainda, tio...

Ele sacudiu a cabeça.

— Meu corpo pode não ser mais de criança, mas eu ainda sou uma criança, entende? Eu sou muito inexperiente; eu não sei nada da vida, nada...

— Esqueça o que houve; você esquece, e eu também esqueço. Tá?

— Eu sou uma menina bem-comportada; eu não sou como algumas amigas minhas, algumas que já vão até em motel e...

Ela se calou.

O sol já sumira do quarto, e o calor diminuíra; em breve começaria o crepúsculo.

Ela se levantou:

— Eu já vou: às vezes amanhã, depois da aula, eu dou uma passadinha aqui.

— É melhor você não passar.

— É? — o espanto no rosto. — Então eu não passo.

— Eu acho que...

— Tiau — ela disse, e saiu do quarto.

Ele ficou algum tempo olhando para o corredor.

Depois, estirou as pernas — devagar, para não doer —, estendeu os braços ao longo do tronco e respirou fundo:

— Merda — disse.

Fechou então os olhos, para dormir um pouco. Mas, de súbito, quase num susto, abriu-os: ela estava ao pé da cama, olhando para ele — os olhos vermelhos.

— O que houve?...

— Eu voltei.

— Eu estou vendo.

— Você foi muito rude.

— Rude?...

— Você me magoou muito.

— Eu?..

— Eu vim aqui te fazer uma visita...

Uma lágrima deslizou pelo rosto.

— Eu vim aqui pra...

Limpou com o dedo outra lágrima.

— Eu sei, Daniela, eu compreendo; eu gostei muito de você ter vindo.

— Gostou... Gostou, mas...

— Sabe?... Eu vou te dizer: essa cirurgia, as dores, as injeções, o soro, ficar o dia inteiro nessa cama sem poder mexer direito e, ainda por cima, nesse calor horroroso, tudo isso perturba muito a gente, Daniela...

Ela escutando.

— Tudo isso faz com que... E então... Sabe? É horrível, principalmente passar horas inteiras sozinho nesse quarto, olhando para essas paredes brancas; isso é o pior de tudo. E era por isso que eu queria que você ficasse mais; era por isso...

— Eu fico — ela disse.

— Fica?... Você fica mais?...

Ela balançou a cabeça.

— Que bom...

— Mas tem uma condição — ela disse

— Eu já te falei que é pra esquecer isso, não falei?

— Não, minha condição não é essa...

— Não? Qual que é a condição?

Ela fez uma cara de mistério; deu meia-volta, andou até a porta e afastou com o pé a trava no chão; depois fechou a porta e girou a chave.

Então voltou-se: olhou para ele e sorriu.

— Sabe — ele disse. — Sabe de uma coisa? Você é uma menina surpreendente.

— E bem-comportada; esqueceu?...

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